Lei Complementar revoga o inciso da Lei que trata bem de família legal.

O empregado doméstico teve suprimida uma oportunidade de satisfazer seu crédito alimentar inadimplido, mediante a constrição do bem imóvel familiar de propriedade do devedor, diante da revogação do permissivo de constrição outrora constante do inciso I, art. 3º da lei 8.009/90.
A Lei Complementar 150, de 1º/06/2015, que entrou em vigor na data de sua publicação (art. 47) - dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico, altera diversas leis e dá outras providências -, fruto de longos e acirrados debates no Congresso Nacional e no seio da sociedade brasileira, talvez não tenha trazido somente benefícios aos empregados domésticos.
A par de todo o extensivo regramento acerca do trabalho e do trabalhador doméstico (definição e enquadramento do empregado doméstico, art. 1.º; fixação da duração normal da jornada de trabalho e estabelecimento de percentual mínimo de remuneração por cada hora extraordinária, art. 2º; obrigatoriedade de registro do horário de trabalho do trabalhador doméstico por qualquer meio, art. 12; previsão de intervalo de jornadas, art. 13, descanso semanal remunerado de, no mínimo, 24h, art. 16; direito a férias anuais remuneradas de 30 (trinta) dias, com acréscimo de, pelo menos, um terço do salário normal, após cada período de 12 (doze) meses de trabalho prestado à mesma pessoa ou família, art. 17[1], etc.), dentre outras importantes conquistas à classe dos trabalhadores domésticos, a lei inovou em um aspecto, até então, tido por extremamente garantidor da satisfação integral dos créditos trabalhistas, em fase de execução.
No art. 46[2] das “Disposições Gerais”, a LC 150 revogou expressamente o inciso I, do art. 3º, da lei 8.009/90, conhecida como “Lei do Bem de Família (Legal), cuja redação original era:
“Art. 3º. A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; (...).” (destacou-se) 
Desta forma, a partir da vigência da LC 150/2015, em face da revogação do dispositivo em apreço, o imóvel habitado pelo devedor, ou sua família (atentando-se para a amplitude tanto do conceito hodierno de família[3] e para a desnecessidade de habitação da entidade familiar no único imóvel – conforme jurisprudência do STJ[4] - e, ainda, para o fato de que a norma protetiva do bem de família tem por interpretação teleológica a garantia do patrimônio mínimo existencial[5] de sobrevivência da pessoa humana, respeitada sua dignidade e o também constitucional princípio do direito social à moradia[6]), torna-se absolutamente impenhorável por dívidas oriundas de créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias.
Com efeito, desde 1º/06/2015, é assegurado ao empregador doméstico devedor, executado em execução trabalhista, opor a objeção de impenhorabilidade (agora) absoluta do bem de família legal, com relação a ditos créditos, haja vista que, por definição e incorporação da extensão dada pelos tribunais, bem de família é, na lição de Álvaro Villaça Azevedo[7], “um meio de garantir-se um asilo à família, tornando-se o imóvel, onde a mesma se instala, domicílio impenhorável (...)”; “uma porção de bens definidos que a lei ampara e resguarda em benefício da família e da permanência do lar, estabelecendo a seu respeito a impenhorabilidade limitada (...)[8], segundo Carvalho de Mendonça, mencionado por Álvaro Villaça Azevedo.”
Em sentido próximo, Rolf Madaleno[9], escrevendo antes da vigência da legislação em análise (CL 150/2015) - apesar de repetir o conceito do art. 1º da Lei 8.009/90 -, enaltece seu objetivo principal, pois acrescenta à definição legal “a finalidade do instituto proteger o direito de propriedade que serve de abrigo para a família, não no propósito de abrigar o mal pagador e sim no sentido de equilibrar o processo executivo”: “é o imóvel destinado a servir de domicílio da família do devedor isento de execução por dívidas de natureza civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de qualquer natureza, salvo as exceções previstas em relação aos débitos descritos no seu artigo 3º”.
Ressalvados algumas hipóteses de difícil interpretação de direito intertemporal[10], cuja solução demandará a análise de cada caso concreto à luz da teoria (da prática) dos atos processuais isolados[11] (princípio tempus tegit actum) -, e sabendo-se que a penhora é um instituto puramente processual (art. 612 do CPC), cujos escopos precípuos são (i) a individualização, particularização e separação de determinado bem, afetado pelo ato de constrição, do patrimônio do devedor-executado - que com todo o seu patrimônio responde pelas dívidas, ressalvadas as exceções previstas em lei[12] (arts. 591, 648, 649 e 650 do CPC[13]) - para (ii) garantir ao exequente-credor a preferência à satisfação de seu crédito, mediante, (iii), por exemplo, venda em à hasta pública para, por fim, (iv) ser pago com o produto da alienação – ressalvados os casos de concorrência de penhora[14] e/ou existência de créditos privilegiados (arts. 612 e 613 do CPC e 957 e seguintes do CC/02), infere-se que a revogação do inciso I do art. 3º da lei 8.009/90, não mais permitirá que o empregado doméstico, em sede de execução trabalhista, ingresse no patrimônio do empregador devedor para promover a excussão do único bem imóvel.
Neste cenário, fragiliza-se o efeito prático a execução trabalhista. Surge, assim, o conflito entre o princípio da máxima utilidade da execução e o do menor sacrifício do executado.
Mesmo possuindo indiscutível natureza alimentar[15], o crédito de empregado doméstico, em caso de concorrência com outros créditos iguais em execução individual – e excluindo-se as hipóteses clausuladas na Lei 11.101/2005, no Código Tributário Nacional e na Constituição Federal de 1988 -, não goza, a bem da verdade, de substancial beneficio nas situações em que o patrimônio do devedor é reduzido ou foi mitigado, por qualquer motivo. Agora, com a subtração do bem imóvel familiar à execução trabalhista, os empregados domésticos terão ainda maiores dificuldades para cobrar seus créditos.
Em especial, se antes o percurso para a satisfação do crédito trabalhista inadimplido era longo e tormentoso, por vários motivos, incluindo, mas não se limitando à própria ausência de bens penhoráveis do devedor, de ora em diante o caminho se tornará ainda mais atribulado, haja vista que o imóvel onde o devedor executado reside reveste-se de impenhorabilidade absoluta.
Logo, se, por um lado, a norma trouxe um alívio para o empregador devedor não mais viver sob a iminência de ter seu imóvel penhorado e levado à hasta pública[16], de outra banda foi demasiadamente alargado o rol de bens absolutamente impenhoráveis, situação que, de certo, causará enormes dificuldades aos trabalhadores para conseguirem, judicialmente, a satisfação de seus créditos.
Assim, no mesmo plano horizontal das exceções absolutas à penhora previstas no Código de Processo Civil (arts. 648 a 650), após a vigência da novel legislação complementar, inclui-se o bem de família legal, ao menos no tocante às referidas verbas.
Portanto, nota-se que o empregado doméstico, ao menos no processo executivo, teve suprimida uma oportunidade de satisfazer seu crédito alimentar inadimplido, mediante a constrição do bem imóvel familiar de propriedade do devedor, eis que fora aumentado o rol de bens absolutamente impenhoráveis do devedor executado (art. 649 do CPC), com a revogação do permissivo de constrição outrora constante do inciso I, art. 3º da lei 8.009/90.
Desta forma, ou justiça laboral passará a acatar a impenhorabilidade do bem de família legal, revertendo a sua sólida e histórica jurisprudência, ou tentará enquadrar, ainda que forçosamente, o crédito trabalhista, dada sua natureza alimentar, na hipótese, por exemplo, do § 2o, do art. 649 do CPC (que fala em “penhora sobre créditos para pagamento de pensão alimentar”), o que, de toda forma, não afeta o bem imóvel do devedor e, certamente, atrairá acesos debates nos tribunais.
Nesta toada de ideias, parece que o legislador, grosso modo, ponderou os interesses e os direitos dos envolvidos, empregado e empregador domésticos, para expandir para aqueles nova proteção e conferir direitos que, até então, não lhes eram (injustificadamente) assegurados[17] (ao contrário do que a Constituição Federal já conferia a outros trabalhadores, art. 7º), e, por outro lado, provavelmente em razão da oneração econômica para esses e visando a manter os empregos formais, terminou por contemplá-los com uma contrapartida – impenhorabilidade do imóvel familiar -, de forma a, ao fim e ao cabo, não haver o temido receio de diminuição de contratação de mão de obra, ou a demissão e/ou informalidade crescentes entre os profissionais domésticos.
Ao equiparar, contudo, os empregados domésticos a outros de diversas categorias econômicas – fruto de uma produção legislativa que deve ser elogiada e reconhecida – dando-se início a uma verdadeira profissionalização do setor, a lei terminou por tolher, visível e simultaneamente, a possibilidade de os trabalhadores domésticos se valerem de atos de excussão patrimonial sobre o bem imóvel de devedores para satisfazerem seus créditos alimentares inadimplidos.
Entretanto, esta constatação não deve inquinar, ou apoucar, por si só, os avanços conquistados pelos obreiros domésticos desde a Emenda Constitucional 72/2013; serve, apenas, para demonstrar que o Direito, enquanto ciência dialética, enquadrado num sistema móvel e aberto, é a afeto ao movimento pendular de evoluções e involuções.
Ouve-se, ainda que ao longe, o réquiem da antiga penhorabilidade do bem de família legal.

Fonte: Autor Arnaldo de Lima Borges Neto

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